Monday, April 30, 2007

o homem que quis deitar fogo a um sonho

guardou o calor dos olhos na algibeira com a ajuda de um lenço velho que lhe dera o pai antes de partir para o lugar longe. onde fica o longe pai, perguntara. fora desta estrada que te aquece os pés meu rapaz. que olhos quentes tens, como os meus quando tinha a tua idade. pareces-te comigo e isso faz-me feliz. mas partira na mesma para o lugar longe, de onde nunca voltara. agora tinha a mesma idade do pai e também ele partia. partia porque o sonho que construira não fazia já sentido, porque todas as mãos, todos os ombros que lhe pertenciam tinham mirrado no canto da casa onde já não entrava o sol e chovia todos os dias. tudo invertido, vestígios de nada. "o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo". lera algures num romance e pensara que também ele já o sentira. olhou as mãos viradas ao céu e não encontrou mais do que nada, sentou-se no degrau da entrada e comeu uma laranja amarga. até o laranjal estava desconsolado. deixou-se ficar envolto numa quietude quase invisível e quando escureceu, trouxe uma vela acesa que deixou arder ao vento, na esperança de que a chama chegasse à sua casa. não chegou. não ardeu. não se desfez. por isso partiu.

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