Monday, April 30, 2007

o homem que quis deitar fogo a um sonho

guardou o calor dos olhos na algibeira com a ajuda de um lenço velho que lhe dera o pai antes de partir para o lugar longe. onde fica o longe pai, perguntara. fora desta estrada que te aquece os pés meu rapaz. que olhos quentes tens, como os meus quando tinha a tua idade. pareces-te comigo e isso faz-me feliz. mas partira na mesma para o lugar longe, de onde nunca voltara. agora tinha a mesma idade do pai e também ele partia. partia porque o sonho que construira não fazia já sentido, porque todas as mãos, todos os ombros que lhe pertenciam tinham mirrado no canto da casa onde já não entrava o sol e chovia todos os dias. tudo invertido, vestígios de nada. "o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo". lera algures num romance e pensara que também ele já o sentira. olhou as mãos viradas ao céu e não encontrou mais do que nada, sentou-se no degrau da entrada e comeu uma laranja amarga. até o laranjal estava desconsolado. deixou-se ficar envolto numa quietude quase invisível e quando escureceu, trouxe uma vela acesa que deixou arder ao vento, na esperança de que a chama chegasse à sua casa. não chegou. não ardeu. não se desfez. por isso partiu.

Thursday, April 26, 2007

quando chegares, bate baixinho na minha janela do quarto, a que tem quatro vidros de ripas em madeira de um muito branco pintada. bate como quando se sopra sem fazer barulho para que te possa escutar. bate como quando se trauteia baixinho, na cabeça, uma música que não se deixa calar.
tráz contigo um lápis de uma qualquer cor que nos possa pintar a pele por dentro, que nos escreva os corpos despidos, debruçados no peitoril das janelas da minha casa. e rodopiaremos em torno dos nossos pés de pau sem sairmos nunca do lugar, pintados a carvão da cor do lápis de que te fizeres acompanhar.
destapa as mãos, mostra-me a pele pintada de azul que te denuncia a caixa das bolachas no cimo do velho armário. mostra-me as tuas mãos ambas, despidas dos panos que te encobrem a tristeza do vazio que não conseguiste ainda desmanchar. pousa-as no meu colo. deixa-as aqui, quietas, sossegadamente abertas aos meus olhos que já tantas vezes lhes diagnosticaram profundo cansaço.
que brancas são as tuas mãos de veias azuis pintadas! ou será a caixa das bolachas? estão tristes as tuas mãos. vazias. feitas de nada. azuis cinza. desconsoladas.

Tuesday, April 17, 2007

desmanchei a jarra de flores rosas que deixaste no fogão do quarto, afinal o fogão não é lugar de jarras e nos quartos não existem fogões. tenho de repensar a casa por dentro e por fora, não fazem sentido paredes despintadas e vasos colados de fresco quando me sento em frente à porta da entrada. falta de espaço. parece-me que tenho de voltar o tapete da sala de cabeça para baixo. acumula pó quando se passa.

Sunday, April 8, 2007

tirei da algibeira o mapa mundo imaginário, tracei a carvão o itinerário e apanhei o barco. é azul.
viagem ao país do meu rosto.

Wednesday, April 4, 2007

pão com doce


era no tempo em que às cinco da tarde corria para casa porque na mesa havia pão com doce para lanchar. no tempo em que me esperavas à janela e eu tardava na brincadeira dos baloiços e fingia não saber que as horas também passavam. e não sabia. na verdade não sabia nada de horas nem de compromissos, nem tão pouco compreendia a razão de não poder ficar infinitamente a balouçar. no tempo em que esperavas por mim na ombreira da porta com um ralhete para me dar! nesse tempo longínquo de joelhos esfolados e mãos sujas de terra verão, correrias e cabelos a pingar, verde à volta, verde e vento na bicicleta pasteleira. e havia sempre pão com doce para lanchar...doce que tu fazias para quando eu chegava, doce de tudo e com tudo, doce doce, doce no pão ou com bolachas, doce às colheradas, frasco de doce, dedo no frasco, dedos com doce, doce no meu imaginário. e lá fora, sempre a rodar, os brinquedos do parque mesmo em frente à janela do teu quarto, de onde guardavas o meu brincar.
se fechar os olhos, tenho-te na janela de pedra da casa por habitar. se fechar os olhos, cheiro a panela do teu doce e quase não me controlo e espeto dentro o indicador para provar. se fechar os olhos com muita força, e não consigo evitar, acordo a saudade imensa que te tenho e zango-me, de um zangar pequenino, por não voltares a ser na janela, nem eu caber no escorrega e no baloiço do parque fim de tarde.